quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

VER PARA LÁ DA PRÓPRIA VISTA

"A humanidade só estará satisfeita quando viver
num mundo que ela própria tenha criado"
(Hegel)

Sim, pois. O mundo é cor-de-rosa, somos todos bonzinhos uns para os outros e eu tenho de escrever isto depressa porque a Juliana Paes está lá dentro a reclamar que são horas de ir dormir (se é que entendem). Convenhamos. A tendência para produzirmos um mundo que não existe é qualquer coisa de inerente à própria natureza humana. Por vezes, os sonhos comandam mesmo a vida. Aliás, são a própria vida. Quando estamos acordados, temos uma visão opaca do mundo que nos rodeia. Vemos o mundo como nós somos e não como ele é, o que faz com que a única realidade existente, do nosso ponto de vista, seja o "eu". Temos consciência do que somos. Eles são. Esta forma solipsista de encarar o mundo marcou sempre a nossa relação com os (outros) animais. E, pior ainda, o cristianismo, que não considera nenhum animal sagrado, com a história do "dominai todas as espécies da terra e do mar" não fez outra coisa senão produzir uma cambada de déspotas profundamente convencidos de que eles são mesmo a única realidade existente. E eles, os outros, não. São meras utilidades. Uma espécie de escravos ao serviço do homem por vontade de Deus. Ao longo da história, daquela história que também é nossa, foram usados múltiplos argumentos no sentido de reforçar a nossa posição de dominância absoluta sobre tudo e sobre todos. Os argumentos da inteligência e da racionalidade e da linguagem foram sempre apresentados como um exclusivo do homem que justificam per se um ponto de vista de cima para baixo e autorizam uma exploração precisamente nesse sentido. Stephen Jay Gould, um notável biólogo norte americano do século XX, no seu livro A Falsa Medida do Homem, faz uma proposta interessante. A páginas tantas diz o seguinte: «(...) o mundo poderia ter sido ordenado de maneira diferente. Suponhamos, por exemplo, que houvessem sobrevivido uma ou várias espécies de Australopithecus, o nosso género ancestral - situação, em teoria, perfeitamente plausível, porque as nosas espécies surgem por desprendimento das antigas (com os ancestrais normalmente a sobreviver pelos menos durante um certo tempo) e não mediante a transformação global de toda a população. Em tal caso, nós - ou seja, o Homo sapiens - teríamos sido obrigados a enfrentar todos os dilemas morais implícitos no trato com uma espécie humana de capacidade mental notoriamente inferior. Que destino lhe teríamos reservado? Escravidão? Exterminação? Coexistência? Trabalho braçal? Confinamento em reservas ou zoológicos?». Não é muito difícil imaginar a resposta. Basta olhar para a história que ela diz muito sobre a forma como sempre tivémos tendência para achar que somos sempre mais qualquer do que os outros. Talvez isto seja uma herança da Antiga Grécia. Os bárbaros são sempre os outros, aqueles, os tais. Claro está que também a nossa relação com os (outros) animais foi sempre marcada por este ponto de vista e que ainda hoje, embora de uma forma mais ténue, permeia as nossas atitudes para com os animais. Mas há diferenças que interessam ser estudadas. Por exemplo, os cães de hoje já não vão à caça, já não vivem acorrentados no quintal e já não comem restos. Ora, isto diz muito, tem de querer dizer muito sobre o tipo de sociedade em que nos transformámos, naquilo que estamos a ser.

A intenção deste blogue, que agora inicia actividade, não é julgar. O interesse está em tomar o pulso. Ver as coisas como elas de facto são e não como deviam ser. Neste caso particular, tenho interesse em caracterizar a multitude de laços que as pessoas estabelecem com os seus animais de estimação. Depois, a minha proposta é de reflectirmos sobre essas práticas culturais e sociais e afectivas que compõem o quotidiano, que fazem o quotidiano. Tudo isto ao mesmo tempo que vamos fazendo uma viagem no tempo e na história e ver como a nossa relação com os (outros) animais se foi construindo. Ao fim e ao cabo, a intenção deste blogue é estudar a relação do homem com os (outros) animais. Isto promete.

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